Histórias do fundo da rua

 Cada pessoa que morre é uma perda incalculável para a espécie humana, não tanto ou somente pelo seu contributo para o avanço civilizacional, mas principalmente pelas histórias e experiências que com ele também partem. Cada pessoa tem uma uma visão única de cada acontecimento constituindo múltiplas realidades de cada experiência. Se perguntarmos a 10 pessoas diferentes como interpretaram um qualquer acontecimento que tenham experienciado, certamente cada uma delas apresentará pormenores que, não desvirtuando em absoluto a realidade, lhe introduzem um pouco da personalidade do observador. 

No meu caso, quando me empurrarem daqui para fora, a humanidade perderá, para além do tal património interpretativo, uma enciclopédia de pequenas histórias, inócuas é certo, mas que o meu cérebro recusa a esquecer por mais anos que passem.

Hoje lembrei-me de uma história antiga que tem como protagonista o Farsolas e, como personagens secundárias este vosso amigo e o Paulinho, outro puto de bairro.

Numa manhã de Verão, ou talvez fosse Primavera, andaríamos eu e o Farsolas pelos 14 ou 15 anos, ou mesmo 16 anos, quando o dito cujo, renomado e reconhecido perito em ideias de merda, apanhou com um pequeno ramo um resto de alcatrão derretido que estava no chão, fruto de uma obras de colocação de candeeiros nos relvados dos Olivais e, com um sorriso canalha nos dentes amontoados, besuntou com ele as traves de madeira de um banco de jardim.

“Épa, Farsolas, tira lá isso daí que o pessoal vai-sa cagar todo.”, disse sem muita convicção já que o demónio também me tentava por vezes. E o alcatrão lá ficou à espera da primeira vítima.

Nem duas horas decorridas, terminadas as minhas actividades diárias que consistiam em deambular por ali a ver os bacalhaus a beberem o néctar das flores que cobriam o patamar de rochas magmáticas a que chamávamos simplesmente “ as pedras”, sentei-me no banco sentindo de imediato o alcatrão colar-se-me às calças.  Como sempre fui muito profícuo no uso do vocabulário, durante a meia hora seguinte, fiquei a exercitar as minhas cordas vocais de onde saíram por muitas vezes as palavras “Farsolas”, “filho da p…”, “cabrão do c…”. Enfim, um exercício deveras salutar que me terá feito muito bem, tanto que, quando mais tarde o encontrei ao pé do local do crime e lhe contei a história já sem a parte do “filho da p…”, “cabrão do c…”, o Farsolas achou tanta graça que, perdido de riso e agarrado à barriga se sentou no banco. 

De imediato ficou muito sério e, como se mão divina o tivesse tocado, pareceu aperceber-se da gravidade da situação e levantou-se um pulo repetindo palavra por palavra todo o meu discurso daquela manhã “filho da p…”, “cabrão do c…” a que acrescentou ainda “ideias de merda” e, com um ramito, raspou cuidadosamente do banco tudo o que restava do alcatrão e limpou-o a um poste de um candeeiro que ainda estava no chão, antes de ir para casa lavar as calças.

Horas mais tarde eu e o Paulinho aproximo-me novamente do local do duplo crime, desta vez acompanhado pelo Paulinho e ao vê-lo fazer menção de se sentar aviso-o “cuidado que o Farsolas cagou essa merda com alcatrão”.

“Ainda vem que me avisas, que estas calças são novas”, agradeceu o Paulinho sentando-se no poste que estava no chão.


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