Vidas

 

Enrolada no tapete da sala D. Charlotte Theodora Maria Ceguinha dorme a sono solto, nem dá por mim quando lhe aproximo um dedo do nariz, ou melhor, dá porque vejo as narinas a sorver o ar e os bigodes tremelicar à procura de qualquer coisa porque valha a pena abrir os olhos. Não encontra e permanece impávida e serena se queixo para cima mostrando a pequena malha branca que lhe tinge o pescoço.

Dou voz ao meus pensamentos “o dia de hoje igual ao dia de ontem e igual ao dia de amanhã” e depois, só para mim, penso que não há vida melhor e que já merecia eu próprio uma vida assim: sem objectivos, sem preocupações, sem ambições. Apenas viver.

Junto à rotunda da BP, uma pequena mancha branca agita no ar a cauda e as patas que já não o vão levar a lado nenhum, o resto do corpo está imóvel. Terá três meses quanto muito e há um minuto atrás estaria convencido que o seu dia de hoje seria igual ao dia de ontem e igual ao dia de amanhã.

Contorno-o com o carro e vejo-lhe os olhos azuis esgazeados de terror e a boca aberta vermelha de sangue que procura agarrar o ar que lhe vai faltando. Imagino o que pensará, sozinho no meio do asfalto quento que penso já não sentir. Sei que nada há a fazer a não ser desejar que o sofrimento dele acabe depressa. O rodado do carro que vem atrás de mim poderá fazer esse serviço. É um pensamento de horrível piedade.

No supermercado encontro a Gabi, fará amanhã 1 ano, andamos para a visitar há 364 dias e encontramos sempre um motivo para adiar porque sempre teremos um amanhã para o fazer. Tem agora 4 dentinhos e um pregador nos cabelos escuros. Chora com os olhos fixos no pai quando lhe toco na bochecha e lembro-me de imediato de uma história do Martin Milan, anti herói da banda desenhada, que li há muitos anos na revista Tintim “ é injusto Deus por tanta fealdade na cara de um homem e tanto amor no seu coração”. Não é que se aplique ao caso mas o meu cérebro é assim, vive cá e lá entre histórias e realidade. 

Para a pequena Gabi o dia de hoje também foi igual ao dia de ontem e, queira Deus, será igual ao dia de amanhã.

No regresso a casa uma amálgama vermelha na estrada é a única recordação de uma vid. Em casa D. Charlotte Theodora Maria Ceguinha continua a dormir



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