Reflexões a bordo do Carnide
Hoje acordei pensativo.
Ou melhor, tornei-me pensativo. É o que dá uma viagem de barco de 30 minutos sem nenhum livro por perto. Não que não tenha na estante uma série de livros em fila de espera para serem lidos, mas simplesmente porque não me apetece.
Eu e a leitura estamos de costas voltadas, não por estarmos zangados mas como dois bons amigos que podem fazer uma longa viagem sem trocar uma única palavra, simplesmente porque não há necessidade.
Assim estou eu e os livros, e quando não tenho livros, penso, recuo no tempo e viajo. Sim porque já tenho idade suficiente para recuar no tempo e encontrar mundos diferentes do actual… ou dos actuais pois foi por aqui mesmo que os meus pensamentos derivaram. Da percepção do mundo e da interpretação que cada um de nós faz dele. Podemos dizer que há só um mundo ou existem vários? Um para cada um de nós. Cada pessoa tem um mundo e um Deus, o seu mundo e o seu Deus. Por esse motivo, as religiões que pregam o monoteísmo pregam apenas um conceito geral, o que cada um faz com o seu Deus é pessoal e intransmissível e, diga-se de passagem, bastante flexível.
Assim torna-se vulgar encontrarmos, por exemplo, um mesmo Deus numa casa condenar o aborto e na casa ao lado aceitá-lo apenas porque os seus ocupantes o condenam ou aceitam. Grosso modo podemos dizer que a religião nos apresenta um Deus pronto-a-vestir e depois, em casa, cada um faz os ajustes à sua maneira.
Mas não era por aqui que eu queria entrar e estou-me a desviar no caminho, não do caminho de Deus, mas dos caminhos tortuosos dos meus pensamentos.
Lembrei-me que já fui pequeno, jovem, daquela idade em que os trinta anos eram considerados o pico da montanha, a partir daí só decrepitude.
A meio do Tejo, a bordo do Carnide, encontrei os meus amigos, aqueles que jogaram comigo à bola vestindo calções de fazenda reaproveitados de calças velhas e joelhos raspados de viver. Um a um foram sacudindo da roupa o pó do baú das minhas memórias e perfilaram-se à minha frente como se o tempo nunca os tivesse tocado: o Paulinho, o Cascão, o Carriça, o Joca, o Farsolas, o Vítor Coxo que nos atirava sarrafadas com a malfadada bota ortopédica que lhe completava a altura da perna mirrada pela poliomielite… e aquelas que, sob o olhar inocente de corça, roubaram e mantiveram cativos para sempre pedaços do meu coração: a Cristina de olhos escuros, luzidios e caninos ligeiramente sobreelevados que encontro agora em Kirsten Dunst; a Luizinha, de beleza tão imaculada que parecia uma Nossa Senhora acabadinha de pintar; a Sílvia, sardenta e de saia plissada que andava quase sempre só a cuidar dos seus gatos; a Ana Maria, sorridente e atrevida ….e a Bela, de corpo fino e esguio e que tinha os lábios mas doces do mundo.
Mais tarde os putos, a segunda geração, os herdeiros do nosso assobio, o Patão, o Alvarinho com a sua dificuldade em dizer os rr, o Filipe e o Miguel os eternos "crepes", o Kicas, Jorginho e o Bispo que na esquadra em frente ao polícia que lhe pedia a identificação dizia "Manuelpedrofernandesbispo" e o polícia "Devagar, devagar" e ele " Ma-nu-el Pedrofernandesbispo".
Do andar de cima veio Mourato, O Zé "Tomate", e do andar de Baixo o Luis, o Martinho e o Niki.
Da praça veio o Dótor, o Zé Eduardo e da Quinta do Morgado o Parreira que hoje anda por terras da América.
Relembro, relembro sempre o José Augusto que se despediu de nós mais cedo sem que nos pudéssemos despedir dele.
Encontrei o Sr. Pires do 2.º frente, que ouvia tocar concertina aos Domingos à tarde. E tão bem tocava que, ainda agora no final de Março, foi convocado para tocar no grande auditório do firmamento; o ti Miguel Jardineiro, de bigodinho e cara rasgada por um milhão de rugas, que nos deixava regar a relva dos jardins enquanto fumava o seu Definitivo; o Sacholas, que em vez de correr atrás de nós de nós nos atirava o sacho porque era proibido jogar à bola na relva. Recordo-me dele, mais tarde, já reformado, de mãos atrás das costas e já sem sacho, a percorrer instintivamente os mesmos caminhos e veredas, tomando conta, mesmo com a autoridade já caducada, da sua relva e dos seus canteiros - também eles já convocados para cuidarem de outros jardins - e os vizinhos que me chamavam, e alguns ainda me chamam, Carlitos.
Hoje ao recordar os meus amigos dei-me conta que afinal eu não sou eu, não sou intrínseco, sou constituído pelas múltiplas imagem que os outros têm de mim e será essa imagem que irá perdurar para além da minha existência
Nos Olivais eu sou o Carlitos, o Carlitos da D. Rosa. Neste barco não sei quem sou.
E quem serei eu quando já ninguém me chamar Carlitos?
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