Uma questão de linguagem


 A propósito de uma notícia que li aqui no facebook lembrei-me de um episódio que se passou comigo há alguns anos e do qual já me tinha esquecido por completo

Encontrava-me eu, na altura deste episódio, destacado nas OGMA, em Alverca, a tentar cumprir o melhor que sabia e que podia a missão de gerir o Posto Médico.

Era uma realidade muito diferente da que eu estava habituado, uma população fortemente sindicalizada e avessa à abertura de serviços a entidades privadas e onde, mercê de um passado recente, ainda reinava com um comportamento por vezes quase militar onde as pessoas estavam habituadas a apresentar-se pelo número mecanográfico em vez do seu próprio nome e então logo a mim que gozava de uma experiencia militar de quatro horas inteirinhas passadas no quartel de Setúbal.

Então, estaria eu talvez no primeiro quarto do meu mandato de quatro anos, quando recebi uma chamada do Parque de Saúde de Lisboa (vulgo Júlio de Matos para os que se recusam a actualizar como eu).

Do outro lado estava uma presumível enfermeira que me convidou com excelentes modos e uma voz dulcíssima a ir levantar o meu doentinho.

“Meu doentinho?” perguntei eu  “Mas que doentinho?”

A voz da senhora presumível enfermeira subiu quase imperceptívelmente de tom.

“Qual doentinho? O vosso doentinho ora essa”

“Mas minha senhora, eu não tenho aí nenhum doente”

“Não tem cá nenhum doente?” repetiu ela, deixando a voz dulcíssima de lado.”Ora essa, então não vieram cá ontem deixar um doentinho?”.

“Que eu saiba não. Como é que ele se chama?”

Disse-me o nome.

“ Não, não conheço.”

“Não conhece? Então veio cá ontem deixar o doentinho e agora não conhece?”.

Adivinhava-se já alguma exaltação na sua voz que atingia uns decibéis acima do que eu estava habituado a presenciar na pista de aviação quando os F16 levantavam voo.

“ Não, não conheço, nunca ouvi falar. A senhora estará a falar para o sítio certo?”

“Se estou a falar para o sítio certo? Claro que estou! Passe-me ao seu responsável!”

“Eu sou o meu responsável!” retorqui.

“Identifique-se! E depois passe-me ao Senhor Comandante!”

Identifiquei-me mas não passei ao meu Comandante porque ele não estava ali, aliás nem ali nem em nenhum lado porque por muita boa vontade que eu tivesse ele simplesmente não existia..

Do outro lado a senhora que gritava comigo pareceu contar até três e perguntou-me.

“Oiça lá, o senhor tem micro-ondas?”

Caiu-me tudo aos pés, a senhora naturalmente estaria louca, eu estava a dar conversa e uma pessoa louca. Seria ela própria uma maluca do Júlio de Matos?”

“Te…tenho.” Titubeei completamente perdido. Parecia estar no meio de um episódio do Twiligth Zone

“Então ligue-o!”

“Não posso, está em casa ao pé do frigorífico!” respondi.

A megera soltou um grito alucinado e desligou-me o telefone na cara.

Completamente atónito fui ao gabinete do enfermeiro Tozé não só para lhe contar o episódio como para me certificar que eu estava bem de saúde.

“Não”, respondeu-me ele com o à vontade de sempre “Era aí para o quartel ali de frente, sempre que lhe pedirem para falar com o Comandante passe para o quartel ali de frente que às vezes as pessoas não sabem o número e ligam parra aqui.”

“Então e a conversa do micro-ondas” perguntei.

“Então você não sabe o que é um micro-ondas?”

“Sei, é onde se aquece a comida”

“Não, na tropa, um micro-ondas e um aparelho de rádio que os quarteis utilizam para falar entre si.!"

“Ahhhh!”

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