O velho 44

 As palavras, como tantas vezes aqui já repeti, são como as cerejas. O mesmo acontece com pensamentos produzidos por estes enfezados e diminutos neurónios que me enchem o espaço que medeia entre o parietal direito e o parietal esquerdo.
Ontem, quando fazia a minha tradicional ronda pelos passeios de Lisboa, deparei-me com um acampamento de um sem abrigo que lá terá a mania de ser filósofo e ao lado da tenda, escarrapachado em gordas letras azuis sobre um cartão, tinha escrito a seguinte tirada digna de um Descartes ou de um Platão nos seus melhores dias
“ Antes de julgares a forma como eu vivo, fala comigo”.
Hoje, ao atribuir um número de referência a uma proposta a enviar a um Cliente, deparei-me com o conjunto de algarismos “44” e de imediato fui transportado aos meus tempos de estudante na Escola Afonso Domingues e ao nosso Professor de Sistemas Digitais, permitam-me aqui escrever com P grande numa homenagem póstuma a tão emérita personagem, 44. Chamávamos-lhe 44 porque foi ele que, inocentemente e desconhecendo ainda a cambada de depravados que estava sentada em frente dele, após dizer o seu nome acrescentou que era o professor n.º 44. Estava-se mesmo a ver o que é o iríamos chamar daí para a frente.
O Professor 44, era já na altura, um senhor de uma provecta idade, de baixa estatura e com uma cor de cabelo que por sí só nos deveria obrigar a respeitá-lo um pouco. Não o fez!
As aulas eram um desconchavo total que ele impávido e sereno tentava ignorar, dando serenamente a matéria que tinha destinado àqueles 50 minutos. Por vezes ainda tentava pôr ordem na sala mas era o mesmo que nada. Eu, o Hernâni Cidade, o Jorge Jorge, o Beato, o Homem de Sá, o Pedro Cabral, o João Paulo, o Polónio, o Nequinho e até a  tímida Fátima tínhamos a nobre missão de boicotar todas as aulas transformando-as num verdadeiro inferno para o pobre senhor.
Eram muitas as vezes que se enganava na matéria e via-se em palpos de aranha para responder quando algum de nós, ia um pouco mais à frente e lhe fazia alguma pergunta coerente, refiro-me, claro está, ao Pedro Resende, que era o único que parecia perceber como é que 1+1 dava zero e ia 1 para a frente.
Rapidamente demos por esta falha de conhecimentos do professor e por estranho que pareça começamos a prestar um pouco mais de atenção às aulas só para o apanhar em falta e então era risadas de morte.
Um dia, a cumprir o nosso dever de alunos muito interessados em adquirir conhecimentos para a nossa vida e tornarmo-nos num futuro próximo membros activos de uma sociedade moderna e justa. Fizemos queixa do velho e da sua visível falta de conhecimentos para leccionar a matéria.
O professor de Tecnologia que nos ouviu, ouviu-nos com toda a calma e depois de aguardar uns segundos em silêncio disse:
“Sabem, quando o ano lectivo começou não havia professor Sistemas Digitais nesta escola. E de todos nós, o “velho 44”, que é professor de matemática, foi o único que se voluntariou para vos dar as aulas. É assim que todos os dias depois de sair da escola, o professor vai para casa e fica noite fora a estudar a matéria que vos vai dar no dia seguinte.”
Depois de relembrar esta história voltei ao presente para ler novamente a frase escrita pelo sem abrigo em grandes letras azuis:

“ Antes de julgares a forma como eu vivo, fala comigo”.

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