Natal dos Olivais
Dentes a bater e mãos afundadas nos bolsos para tentar escapar ao frio, fazemos uma roda dando costas à humidade nevoenta. Nada nos faz ficar em casa, nem o frio que nos penetra camisolas e casacos de lã até nos chegar aos corpos faltos de carne, nem o nada que fazer para além da conversa habitual e do contacto uns com os outros.
- Este ano vai nevar em Lisboa. – diz o Paulinho, passando a língua pelos lábios roxos de frio. E depois concluía - os americanos disseram.
Todos os anos, quando chegava o Inverno, repetia as mesmas palavras e nós olhávamos esperançados o céu como se esperássemos a todo o instante ver um floco de neve cair sobre o nosso nariz. O querer era tanto que eu e o Cascão, ano após ano, fingíamos acreditar que assim seria e que naquele ano, a neve que só víramos na televisão, iria finalmente cair em Lisboa.
- Este ano vai nevar… - repetia, e afundávamos as mãos enregeladas nos bolsos.
Nunca nevou. Quanto muito, por vezes, nos dias mais frios, uma geada branquinha acompanhada por um nevoeiro húmido que nos fazia falar baixinho e nos orlava os casacos e cabelos de pérolas de orvalho, cobria os relvados. “Está a cacimbar”, dizíamos nós nessas alturas afundando ainda mais as mãos nos bolsos dando voz a uma expressão colonial que hoje em dia já quase ninguém usa.
E quedávamo-nos a olhar para o céu à espera daquela neve que nunca caiu.
Já não há Invernos assim e aquecedores e lareiras não me aquecem como aquela roda de amigos que esperavam todos os anos ver o mundo caiar-se de branco.
O tempo de Natal sempre foi o melhor tempo das nossas ainda curtas vidas.
“Pai, quando é o Natal?”. Perguntei quando, ainda noite escura, subia a Rua Direita de Marvila em direcção ao número 9, pela mão do meu pai que pegava cedo ao trabalho.
Um aroma adocicado a pão quente saía da padaria acabada de abrir portas e as pessoas que passavam por nós falavam baixinho parecendo ter receio de acordar o sol que àquela hora ainda dormia.
“Qualquer dia”
“Pai, e quando é qualquer dia?”
Curioso como nos ficam gravados na memória estes pequenos nada de que é feita a vida.
Ao primeiro dia de Dezembro saía de casa cedo na companhia do meu pai e rumávamos a pé a Moscavide para comprar o pinheiro de Natal, um pinheiro autêntico repleto de folhas agudas que picavam os braços e cheiro intenso a resina. Comprávamos um mais ou menos porque os grandes e mais bem compostos eram muito caros, mas depois de procurar bem, sempre lá conseguíamos arranjar um que nos parecia mais bonito que os outros.
Na volta vínhamos de autocarro quando o motorista assim o permitia, quando não, um à frente e outro atrás, carregávamos com ele até aos Olivais. Mãos peganhentas de resina e o meu pai a dizer “vê lá não o deixes encostar às calças”.
Chegados a casa, o pinheiro era enfiado num balde de folha e bem escorado com pedras antes de ser iluminado por um único jogo de 3 lâmpadas de 220 volts, ao qual todos os anos o meu pai retocava pacientemente a pintura, uma em tons de vermelho, outra em tons de azul e uma terceira em verde, não piscavam nem tocavam músicas de natal como as de agora mas, de todas, foi a melhor iluminação que já tive e a que melhores recordações me trás. Só depois o pinheiro, agora já árvore de natal, era enfeitado de bolas e fitas às cores que se guardavam cuidadosamente de um ano para o outro embrulhadas em folhas de jornal para não se quebrarem. A neve era de algodão esfarrapado que espalhávamos a eito sobre os ramos e, por baixo, ao abrigo das agulhas iluminadas, montávamos o presépio feito de figurinhas de barro, que anos antes tinham vindo substituir as estampas de cartão dos meus primeiros presépios. Os caminhos, eram traçados a areia sobre o musgo que eu e o Paulinho íamos apanhar logo manhã cedo pelas bordas dos caminhos e pelos relvados em redor do prédio, e uma prata de chocolate fazia de lago onde púnhamos a nadar patos brancos.
Os cheiros em casa eram a pinho ao qual mais tarde se viria a mesclar e sobrepor o aroma do ananás que, mais perto do Natal, tinha sempre lugar de honra na fruteira que ficava em cima do aparador da sala de jantar.
Dias depois acontecia o Natal dos Hospitais e o país parava para ver na televisão um Nicolau Breyner e uma Florbela Queiroz a repetirem os mesmos números ano após ano, mas que víamos como se fossem sempre novos, um Carlos Moniz e uma Maria do Amparo a cantarem os dois muito juntinhos e muito certinhos, um António Calvário, uma Hermínia Silva, um Raul Solnado, um Camilo de Oliveira, um José Viana a cantar o Zé Cacilheiro “sou marinheiro, neste velho cacilheiro, dedicado companheiro...” e para o fim ficava sempre, como hoje ainda fica, o Coro de Santo Amaro de Oeiras com a pequenada a cantar o hino de Natal… era quase um feriado nacional, um acontecimento que, em dimensão, só era comparável ao Festival da Canção
Ao início da noite, logo depois das notícias, era a vez de ouvir os nossos soldados lá pelas Guinés a desejar as Boas Festas aos familiares que por cá ansiavam pelo seu regresso.
Muitos deles, indo directamente das suas pequenas aldeias para o vapor que os levava para a guerra não sabiam dizer duas palavras seguidas, muitos dos que ouvimos atabalhoadamente a desejar “um Feliz Natal e muitas posperidades” não voltaram, tal como não voltou o Vítor que trabalhava na Dália Azul ao pé da praça a vender tecidos a metro. Foi mandado para Áfricas e aqueles azuis céus africanos foram os últimos que viu.
É Dezembro, dia 24, pelas janelas abertas das cozinhas chega-nos aos narizes vermelhos de frio o aroma dos fritos que as nossas mães se afadigam a cozinhar para aquela noite especial. É tempo de Natal, uma das poucas ocasiões em que há fartura de doces em todas as casas daquele bairro, na altura ainda periférico, da cidade de Lisboa. De quando em quando, um de nós abandona a roda para regressar minutos mais tarde a lamber os dedos açucarados de uma filhós ou de um sonho. Quase em uníssono, ouve-se um “dá cheta” pronunciada por muitas bocas e o doce passa de trinca em trinca até regressar bastante ratado à boca do dono.
Na minha casa, o destaque ia para os tradicionais sonhos de abóbora que a minha mãe todos os anos copiava, passo a passo, de uma receita de Maria de Lourdes Modesto recortada de uma revista muito velha.
De casa do Pepe, saiam as filhós de floreta respingando uma calda de mel que a D. Águeda sabia fazer como ninguém e dos quais fazia sempre chegar um pirezitos lá a casa; da casa do Paulinho eram os pastéis de nata, pouco natalícios é certo, mas igualmente deliciosos e a saber a limão; do Cascão não me recordo o que chegava à nossa roda, mas alguma coisa havia de cair nas nossas bocas gulosas.
Em minha casa, independentemente da altura do ano, jantava-se cedo e na noite de Natal não era excepção, às nove horas já o meu pai se tinha ido deitar a ouvir telefonia e a minha mãe, depois de arrumar a cozinha¬¬, ficava mais um pouco no sofá a tricotar, a minha irmã andava lá por casa a cirandar e eu, embalado pelo tic tic das agulhas de lã da minha mãe, descansava o olhar na prata de chocolate que, em cima dos carvões incandescentes da braseira, ia mudando de cor à medida que o calor das brasas a aquecia.
Antes de nos irmos deitar desligavam-se as luzes de Natal e os sapatinhos, cuidadosamente colocados debaixo da árvore de Natal ficavam a aguardar a vinda do menino Jesus.
No final dos anos 60 o Pai Natal ainda não tinha aberto actividade nas finanças e era o menino Jesus que, quando tinha oportunidade, descia pela chaminé e punha uma prenda no sapatinho que aguardava junto ao presépio para que o menino não tivesse que procurar muito.
Mais tarde na vida, já sem o encanto da prata na braseira, agora substituída por um radiador eléctrico, depois de jantar vestia o casaco e abalava para a rua e para o frio da noite, à espera dos outros malteses. Normalmente a espera era longa porque os jantares arrastavam-se mais do que o normal, mas não me importava, gostava de estar sozinho naquele silêncio feito de geada.
Sempre gostei do silêncio que se faz na noite de Natal, parece que o próprio tempo se suspende e anda em bicos de pés para não incomodar o menino que nasce.
Finalmente, um a um, a malta descia de suas casas e íamo-nos juntando de volta, ombro com ombro, já não falávamos da neve que haveria de cair naquele ano, nem vínhamos de bocas sarapintadas de açúcar, apenas restava aquela doce melancolia das conversas e o hábito de afundar as mãos nos bolsos.
Um pouco antes da meia-noite subíamos ao jardim da igreja para ver a cachopas que saíam da Missa do Galo. Na realidade e olhando para trás, penso que não íamos ver as miúdas, mas apenas aquele movimento de homens e mulheres que naquela noite de paz e reconciliação, saíam da igreja e se cumprimentavam afavelmente uns aos outros antes de seguirem para suas casas. Mas, como disse, isso foi anos mais tarde quando já ganhara corpo e já não havia sapatinhos debaixo da árvore.
No dia de Natal, depois de um pequeno-almoço de sonhos e rabanadas frias a pequenada saía novamente à rua. Sorrisos largos no rosto da alegria de desembrulhar as prendas, o chocolatito Grand Prix da Regina, comprado meses antes e escondido no fundo de uma gaveta para que não déssemos com ele antes do próprio menino Jesus o encontrar, ou uma nota de vinte escudos em tempos de fartura e era isto. A roupa não contava, porque roupa não era prenda.
Brinquedos no Natal eram raros e, como tal, lembro-me de todos os que tive, uma bola vermelha em plástico; um navio de casco branco e coberta azul com o nome mitológico de Hércules; uma carrinha Wolksvagem, vulgo “pão de forma”; um monopólio comprado na Espanhola, e, lá pelos meus 10 anos, uma Kodak 33, a minha primeira máquina fotográfica, que me foi oferecida numa festa de Natal no Pavilhão dos Desportos. Foi a última prenda de criança.
Éramos uma espécie de parte de trás da árvore de Natal, sem o brilhos das luzes e dos enfeites mais bonitos que ficam sempre na parte da frente
Passava o Natal e o pinheiro parecia perder o brilho, as luzes já não eram as mesmas e até as figurinhas do presépio pareciam cansadas de ali estar sem nada para fazer. Nem mesmo na passagem de ano, quando vínhamos à janela e saíamos à rua a bater panelas, se pareciam animar e lá se iam custosamente mantendo de pé no musgo que principiava a secar até ao dias de Reis.
Dia 7 de Janeiro era tempo de desmontar a árvore e embalar as coisas, bolas e fitas, voltavam a ser cuidadosamente embrulhadas em folhas de jornal e arrumadas na arrecadação tendo o cuidado de colocar as peças do presépio por baixo para não partirem as bolas com o seu peso. As lâmpadas eram desatarraxadas da extensão e guardadas numa gaveta à espera que o seu ciclo se reiniciasse um ano depois. Despojados dos seus adornos e deitados à rua para que os homens do lixo o levassem na sua última viagem, o pinheiro de natal conhecia então uma nova e inesperada vida.
Recolhidos pelos arredores junto aos caixotes do lixo, levávamo-los para trás do prédio e construíamos com eles cabanas ou, para dar mais importância à construção, quarteis general ou fortes, onde aqueles soldados de fundilhos rotos se acoitavam da cacimba e do frio daqueles Invernos gelados, sentindo na alma o cheiro da resina e as pequenas gotas que se iam formando nas agulhas dos pinheiros.
“Pai, quando é o Natal?”
“Qualquer dia”
Comentários
Enviar um comentário