Padrões Comunitários
Fiquei surpreendido ao saber que em pleno século XXI ainda existe um país neste planeta a que gostamos chamar Terra cujo sistema penal ainda se rege por ideias que em nada evoluíram desde a Idade Média. Quero dizer, já sabia que existe a Coreia do Norte e a China e alguns, muitos, países africanos em que a palavra democracia só fica bem pendurada numa parede para os turistas verem.
O sistema judicial e penal deste país que falo, assenta numa serie de leis, a que pomposamente chamam padrões de comunidade que, tal qual os Dez Mandamentos que Moisés trouxe da montanha inscritos numa pedra, constituem toda a base legal do país.
Na realidade, estes padrões comunitários, não são bem uns padrões comunitários porque em nada expressam os valores da comunidade, são isso sim, uns padrões emanados pelo todo poderoso Estado que governa esse país e que impuseram aos cidadãos por tanto tempos que os nados locais pensam que também são os seus padrões, não se dando conta no seu dia a dia que não foram dados nem achados na formulação daquelas leis. Apenas os mais velhos se lembram como eram os tempos longínquos em que se podia escrever e falar sem que viesse alguém apontar-nos o dedo ao nariz como se fôssemos uns gaiatos.Tudo bem que em qualquer altura os cidadãos insatisfeitos são livres de atravessar a fronteira e estabelecer-se noutro qualquer país acolhedor. O problema é que todos os seus familiares e amigos residem ali e abandonar o país é abandonar quase todos eles, pelo que a maioria dos residentes descontentes com os padrões comunitários prefere sofrer o seu jugo a emigrar.
Na realidade, quando digo que existem cidadãos insatisfeitos com os padrões comunitários, quero apenas dizer que estão descontentes com o sistema judicial e a forma como policia e castiga os possíveis infractores, porque, na realidade, os padrões comunitários até são simpáticos e fofinhos e parecem á primeira vista sensatos e justos. Aliás, tal como os Dez Mandamentos acima referidos também pareceram justos aos hebreus até Moisés, para castigar o incumprimento de um dos mandamentos, condenar à morte por lapidação uma mulher adúltera. Aí os hebreus levaram as mãos às partes íntimas e soltaram um profundo “Hummmmm! Não sei, não. Se calhar mais valia sermos escravos e dar uma quecas à vontade do que andarmos aqui perdidos no meio do deserto com umas quantas cabras e roupas que fazem comichão no corpo”.
Para conseguir manter o seu omnipresente controlo sobre os cidadãos, o Estado reuniu uma série de delatores free lancer que, constante e gratuitamente, vigiam as palavras e acções dos outros cidadãos informando o Estado de possíveis conspiradores que ponham em causa as Leis instituídas para que sejam exemplarmente punidos e não terem mais veleidades de pensar por eles próprios.
Mas como todos os ditadores, o Estado não consegue dormir bem e temeroso de um dia ser atraiçoado pela inércia e humanidade da sua horda de bufos e ver crescer uma oposição ao seu poder dentro do país que o pudesse destituir, criou um sistema de vigilância que suprimia a fraqueza humana e pelas ruas, pelos telhados, pelas árvores e pelos ares começaram a aparecer uns pequenos dispositivos automatizados que controlavam e registavam tudo o que era dito, escrito ou pensado pelos cidadãos.
Mas isto também não bastava, era necessário dar também a conhecer aos cidadãos que estavam a ser mesmo sob vigilância para que estes não pensassem que estar à vontade era estar à vontadinha e periodicamente os cidadãos começaram a receber uma mensagem, a que o Estado carinhosamente chamava “Memórias”, que os recordava do que tinham dito, feito ou fotografado há 1, 2 ou mais anos, mas que na realidade queriam dizer “Eu sei e tenho registado tudo o que fizeste durante toda a tua vida portanto põe-te a fancos”. E os cidadãos ao receberem estas Memórias não se apercebem deste controlo e pensa que o Estado está a ser amigo e se preocupa com eles e galhofam “olha onde eu andava à 2 anos. Já me tinha esquecido!”. Pois sim, tinha-se esquecido, mas o Estado não esqueceu.
Todavia, se por um lado estes dispositivos de vigilãncia do Estado vieram resolver um problema de hipotética falta de informação, por outro lado vieram criar outro. O de excesso de informação!
Como toda a informação colectada se tornou excessiva para ser processada por seres humanos, mesmo para os indefectíveis e dedicados assalariados do Estado, a informação passou também a ser tratada por máquinas que, através um complicado sistema de códigos e inextricáveis linhas de programação, foram ensinadas a procurar palavras chave que por si só ou em conjunto com outras fizessem soar um alarme sobre potenciais manobras de subversão e assim, palavras como x, y ou z, que eu nem me atrevo a escrever aqui, são processadas, comparadas com as palavras proibidas e, se coincidentes, fazem soar sirenes e luzes vermelhas rotativas que de imediato dão origem a um castigo preventivo aos potenciais traidores dos padrões comunitários e da pátria. O afastamento temporário da comunidade!
De fora da análise fica a semântica, contexto, ironia ou segundos sentidos. O que conta é a sintaxe.
Para as amebas sem espírito crítico que constituem 95% da população e cujas frases não passam de “linda”, “gata”, “maravilhosa”, “têm é inveja da Cristina Ferreira”, este país é uma espécie de Eden onde podem passear sem qualquer folha de videira a cobrir a sua falta de inteligência.
Já para quem tem espírito crítico ou é parvo como eu, este país tornou-se sufocante. Se uma pessoa diz ou escreve uma frase tão inocente como “Cheguei a Paris e está bom tempo”, o seu instinto de sobrevivência fá-lo de imediato reflectir e voltar atrás “Che… guei? … Che…gay? O que quererá dizer “Che” em polinésio? Será alguma ofensa? E em Suali? Quererá dizer alguma coisa? Não, é melhor escrever: Ando por Paris e está bom tempo”
Porventura estarei a exagerar um bom bocado. A sentença não é taxativa, ao cidadão condenado é-lhe sempre concedido o direito de não concordar com a decisão e pedir a revisão e eventual revogação da pena num julgamento em tribunal de segunda instância. Todavia, para surpresa do incauto cidadão, no dia do julgamento não lhe é dada a hipótese de defesa, pelo contrário já depois de negar as acusações dá-se conta que é a máquina que o condenou que vai assumir a forma de testemunha de acusação, advogado e juiz pelo que se limita novamente a analisar a palavra que levou á sentença a confirmar a decisão.
Como não há duas sem três, depois de atribuírem um número de processo ao condenado, tal como era feito aos “a certas pessoas” durante o holocausto, é concedido um último recurso ao prevaricador: recorrer para um Órgão Consultor independente chamado Conselho de Supervisão que é assim uma espécie de Tribunal Constitucional ou de Tribunal dos Direitos do Homem. Aqui é-lhe dado o direito à palavra e o acusado pode-se defender afirmando que a palavra foi retirada do seu contexto, e que a palavra apesar de ter o mesmo sufixo e prefixo da palavra proibida não quer dizer o mesmo e que não, não sente qualquer ódio a esta ou a outra pessoa ou a esta ou aquela raça ou àquele ou outro grupo minoritário.
O problema é encontrar a morada do tal Conselho de Supervisão porque aquilo parece que fica na Diagon Alley e embora o Estado dê ao cidadão todas as indicações como proceder e como lá chegar, a realidade é que quase ninguém encontra a porta e ainda menos se consegue lá entrar e o réu, já cansado de tanto andar e voltar vezes sem conta ao mesmo local sem conseguir dar Com o Conselho de Supervisão acaba por desistir.
Os poucos sortudos que por um qualquer acaso conseguem dar com o dito edifício vêem que afinal também não são assim tão sortudos porque logo à porta pregado num enorme painel encontra-se escrito a letras vermelhas.
“ O Conselho de Supervisão demora cinco dias a dar resposta ao seu recurso”
“O Conselho de Supervisão apenas analisa uma pequena parte dos recursos que lhe são apresentados”
“Então para que é que eu vim aqui?”, pensa o cidadão. “Isto parece uma estação dos correios em dia de receber o RSI, espero imenso, não tenho garantia de ser atendido, e só consigo enviar a encomenda depois de passar o Natal”.
Isto não é fantasia, este país existe mesmo e chama-se Facebook.
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